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Foto do escritorCaio Paes de Freitas

"A minha especialidade é matar"

Atualizado: 15 de jan. de 2023

A morte como modo de existência


Valar Morghulis


Valar morghulis é a frase que Arya Stark se habitua a repetir em Game of Thrones (As Crônicas de Gelo e Fogo). A frase significa “todos os homens devem morrer”, esta saudação que se repete ora como prece ora como cumprimento deve ser respondida com a frase Valar dohaerys traduzida como “todos os homens devem servir”. Na história, a personagem vem a descobrir a ligação destas frases com uma religião que cultua a morte (a morte em si, suas infinitas faces), eventualmente arya, passa de uma filha da nobreza para membro de uma seita de assassinos de aluguel, à serviço da morte, abandonando seu rosto, sua identidade, sua história.


Esta saudação ( Valar morghulis/dohaerys) traz em si a evidência de um vínculo entra a inevitabilidade da morte (em suas múltiplas faces), e a força que impele os homens ao trabalho, ao serviço, ao sacro-ofício de se oferecer como arma do destino inexorável, sem personalidade (robô? De quem é este robô?) vetor da morte vista como certa e inevitável.

Sem dúvida isso produz uma história de ficção muito interessante. Mas quando esta concepção onde a inevitabilidade da morte toma o lugar central de um deus (ou messias) que exige aceitação e serviço resignado, estamos em perigo.

É preciso resistir a ser para a morte, se negar a ser um zombie.

É preciso resistir a esta lógica que prega contra qualquer adversidade soluções de carestia, hierarquização e expurgo. Quando a morte é o centro de um sistema ideológico que exige aceitação e sacrifício da individualidade para favorecer uma disciplina de grupo voltada para o serviço a um ideal ou líder infalível, que deve ser obedecido , está efetivamente formado um culto à morte.

Seitas articuladas em volta de padres satânicos que se lançam pelos quatro cantos do país a esbravejar “caveira!” “deus vult” “mito!” “não queremos a vacina! Temos a cloroquina!” de diferentes maneiras, pregando o extermínio das diferenças para purificar o mundo, e se isso leva os integrantes destas seitas a matarem ou a tornarem-se vetores de vírus mortais, isto pouco importa, todos morrem um dia. Diria um membro da seita “eu estava servindo minha nação, meu ideal, meu líder, deus quis”


Onde multidões embrutecidas estão convencidas de que o mito está sob ataque de todos, e é tão bom o messias que precisa apenas da nossa confiança, suporte e é claro

Com o título do texto creio que esteja claro que não falo aqui de seitas no sentido literal da palavra, mas sim em agenciamentos fascistas que se formam a partir de um encontro de diferentes forças reacionárias que se atravessam para formar um modo de vida serviçal da morte no cenário político-existencial brasileiro em 2021.

Onde multidões embrutecidas estão convencidas de que o mito está sob ataque de todos, e é tão bom o messias que precisa apenas da nossa confiança, suporte e é claro mais poder




O culto à morte


“Fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30.000”


“Se vai morrer alguns inocentes tudo bem”


“e daí? Quer que faça o que? Eu não sou coveiro”


“vamos fuzilar a petralhada aqui do acre”


“Todo mundo vai morrer, o Sérgio vai morrer um dia”


“Tem que enfrentar isso, deixar de ser um país de maricas”


“que prato cheio pra urubuzada que ta aí”


“Caveira!”


Todas estas citações são do mesmo elemento, autor também da frase que da título ao texto. A última reproduzida (Caveira!) bravejada ainda em 2018 durante a campanha presidencial em um encontro com oficiais do BOPE (força especial da polícia do rj) o BOPE, como popularizado pelo filme tropa de elite, tem como seu símbolo a caveira atravessada por uma faca, e seu grito de guerra é “caveira”.

Nos cursos de formação da PM e mesmo na pagina do exercito brasileiro na internet, o símbolo de faca na caveira é apresentado junto com uma história mitológica de que este seria o símbolo que durante a segunda guerra mundial comandos britânicos (em algumas versões americanos) deixavam em bases nazistas que tinham sido invadidas, como símbolo de “triunfo contra a morte”. Esta história não se confirma, na realidade foi desenhado por um militar durante um treinamento de forças especiais durante ditadura militar (confira aqui)

Porem, mais interessante que nos perguntarmos “o que significa que este símbolo de uma caveira atravessada por uma faca tenha sido desenhado por um militar num curso em 1968?” seja se perguntar “o que ter esse símbolo como objeto de devoção produz em um grupo ou indivíduo?”

Como popularizado pelo filme "Tropa de Elite" (2007), fazer parte de uma tropa cujo símbolo é uma crânio atravessado por uma faca, cujos membros se identificam como “caveiras” em que cantam que sua missão é subir o morro e deixar corpo no chão, é uma experiência capaz de transformar dois jovens idealistas em caveiras, pessoas expostas a todo tipo de perigo e tornados capazes e autorizados as mais diversas violências, torturas e execuções.


O filme nos mostra como uma instituição violenta se conecta a todo um universo de referências de violência a morte e ao assassinato como solução para o problema da segurança pública. E então se apropria dos corpos de pessoas bem intencionadas e com alto senso de dever, para tornar os corpos partes de uma máquina de guerra devoradora que serve às mais perversas lógicas de uma guerra social absolutamente sem sentido no coração do Brasil.

Esta guerra alimenta o absurdo do encarceramento e extermínio em massa da juventude negra do Brasil.

A ideia de que as forças de segurança são os profissionais da violência é prima da ideia de que contra toda ameaça, seja ela de origem econômica, sanitária ou política, a resposta é simples, "porrada neles!", devemos dobrar as apostas, cerrar os dentes e nos lançar na carnificina. E podemos extrapolar o mesmo pensamento para as demais citações?

Penso que em determinado sentido sim!

O que vemos se formar com o fascismo tupiniquim é uma constelação de universos de referencias que trazem em si algumas características: um forte sentimento de dever e justiça; convicção; hierarquia; sacrifício.

Me refiro a confluência do pensamento militarista com o pensamento neopentecostal, a doutrina neoliberal e práticas fascistas de mobilização política. Respectivamente pensamentos que negam o corpo, o papel do estado e a individualidade, e afirmam o messianismo, a desigualdade social e a existência de cidadãos de primeira e segunda classe.

Este encontro de ideologias criam um plano de fundo que seduz os membros a crerem que se encontram em um grupo especial, uma elite, inteligente e pura. Em relação com quem esta fora do grupo, são os mais morais, competentes, idôneos, incorruptíveis, competentes, potentes.

A pertença a este grupo foi ligada de então ao núcleo desta máquina ideológica, seu rosto de deus, a figura onipotente do “mito”, do “Messias”, assim como só é flamenguista quem torce pro Flamengo, só faz parte do grupo de iluminados “patriotas” aqueles que apoiam o mito, contra todo o resto. O mito, devem messias, o líder da seita, homem iluminado por deus para falar a verdade e que é combatido pelo mundo corrupto e impuro justamente por sua pureza e moral, o mito veio nos salvar e sofre perseguição de "tudo isso daí" que "tem que mudar"!

Uma vez formado, este grupo, para manter esta liga que serve de plano de referência e catarse para sua própria impotência, deve se alimentar da mesma qualidade de afetos que o tornaram possível em primeiro lugar.


No caso do fascismo tupiniquim estas forças foram justamente a sensação de ser elite, o militarismo, o destino escrito por deus, uma missão de limpar o mundo e por ultimo mas não menos importante, o amor à morte, sua inevitabilidade, e sua banalidade também.






O que temos no “mito” fascista brasileiro é uma máquina de canalizar repressões, traumas e impotências, que entre os brasileiros propaga em nome do bem um verdadeiro culto à morte como meio único de expurgar o mal do mundo, este mal atribuído como corruptor, causa das mesmas falhas e impotências citadas. Eliminar é criar o futuro mais puro.

O bolsonarismo é uma seita de culto à morte, em todos os seus aspectos purificantes; catárticos, é filho do mesmo tipo de encontro que produziu diversos genocídios, perseguições e guerras na história da humanidade.

A sagrada permissão para, em nome do bem maior, matar e deixar morrer, prestar serviço à morte se for necessário.

Afinal,

Valar Morghulis



Caio Paes de Freitas | Esquizoanalista




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