Em toda terapia a questão do relacionamento amoroso irá mais cedo ou mais tarde ser colocada, as vezes de um lugar lindo e cheio de flores, outras vezes como um mar de espinhos, neuroses e preocupações. Hoje vamos lançar um breve olhar sobre as alianças amorosas e em como os amores e os relacionamentos podem ser acontecimentos que encham de impulso e vida, ao invés de se tornarem instituições que diminuem a alegria.
Existe, nos amores pobres a tendência a colocar a pessoa amada num lugar de objeto, isto é, a tendência a criar uma imagem idealizada do outro amado e a exigir que o parceiro se comporte tal qual as expectativas que foram inventadas, muitas vezes esta idealização foi feita antes mesmo de conhecer o parceiro, através das próprias fantasias criadas e alimentadas desde a infância a respeito de quem e como deve ser o “grande amor”. Esta constatação leva alguns terapeutas mais pessimistas, a assumir que este é um beco sem saída, que haverá sempre esta falta essencial ligada ao amor, onde a pessoa amada nunca irá corresponder ao amor idealizado que foi fantasiado. Não sou tão pessimista. Todavia reconhecer que existe esta idealização do amor romântico é o primeiro passo para desfaze-la, e enriquecer muito as qualidades dos encontros amorosos.
Em primeiro lugar devemos entender que não existe “eu” ou “outro” acabado, fechado, muito pelo contrário, devemos entender que aquilo que nos torna quem somos é um processo que acontece constantemente e a cada segundo, é preciso portanto olhar para nosso próprio “eu” e ver por quantas metamorfoses já passamos, quantas opiniões já tivemos, quantos pensamentos, quantos experiências completamente diversas nos mudaram para sempre. E em todos os lugares existe potencialmente uma experiência transformadora, que desfaz o nosso chão e cria uma nova terra debaixo de nossos pés, tudo pode mudar ao passear no parque e ver um pássaro comer um inseto, tudo pode mudar ao participar de um protesto ou revolução, ou ao ir a um evento de arte. Para que a mudança aconteça basta apenas que algo em nós se conecte com algo fora de nós, e pronto!
O amor é um encontro que tem esta característica de mover, deslocar o sujeito de seu lugar habitual e o levar ao encontro de um novo mundo, por isso talvez que ao falar de amor trazemos a ideia de uma “queda”, ter uma “quedinha” por alguém não pode ser proposital, é como andar na rua e topar o pé no chão, um acontecimento inesperado pelo qual somos convocados e não podemos evitar. Sendo assim é preciso afirmar que todo amor digno do nome começa como um afeto revolucionário, que reorganiza os sujeitos em torno de uma nova potência.
Porém, na tentativa de guardar para si, de tornar instituição permanente esta força inicial, tentamos nos agarrar a ela e esquecemos que ela só foi possível por causa de um deslocamento inesperado das forças ao nosso redor. Nesta tentativa de agarrar o efêmero colocamos todo o tipo de redoma sobre o encontro amoroso, e através dele acabamos por expressar nossas frustrações, angustias e medo relativas ao reconhecimento, a aceitação, ao afeto e é claro o sexo.
Porém há ainda uma maneira de viver o encontro amoroso que possibilita não a perpetuação do encontro inicial, mas uma constante renovação e reinvenção dos sujeitos envolvidos na aliança, portanto uma constante reinvenção do encontro amoroso. E então o relacionamento ao invés de ser instituição com papéis rígidos se torna uma dança de pares repleta de improviso, na qual cada um dos dançarinos se lança nas transformações da vida enquanto estende seu braço para dar suporte aos passos dos outros. Os bons dançarinos dirão sempre que não se trata de fazer os mesmos passos, mas de com cada passo criar a possibilidade de um novo movimento para o outro, um novo corpo conjunto.
Viver o amor neste estado de composição criativa envolve um despojamento da lógica familiar e instituída para abraçar uma lógica estética e afectiva, envolve um amor que não tente podar no outro aquilo que parece ameaçar a relação, mas encontrar justamento onde o amor real difere do amor ideal, a plataforma propulsora para se reinventar, e renovar justamente a potência alegra e inventiva do amor.
Nunca tentar impedir que algo mude, mas sempre habitando o fluxo de transformação, e se permitindo compor com a diferença, com aquilo que no outro me parece louco. Ousar um amor diferente daquilo que já foi escrito, Ousar amar de forma diferente da que se amaram nossos pais e avós, de forma outra que a apresentada nos filmes, de forma sempre nova e única, pois não há formula geral para os encontros, como não há a bíblia do amor. E então mesmo que esta tentativa fracasse em algum ponto já não somos mais os mesmos, somos capazes de amar de toda uma outra forma, nos conectamos com o movimento real do mundo e incorporamos esta experiência, nunca mais seremos os mesmos.
Quando se trata das relações amorosas a nossa aposta “klínica" é a ousadia dos amores loucos, a potência das paixões arrebatadoras, a capacidade de uma dupla (ou trio ou mais) na qual um termo é sempre plataforma propulsora de um outro que ao se lançar no indefinido o estende a mão convidando para a dança. Nossa aposta vai em direção ao charme das diferenças, ao charme da loucura. Nossa aposta é na potência daquele desentendimento que os mais pessimistas chamam de falta. As favas com a tentativa de tirar do outro o brilho dos olhos, de fazer o outro caber nos nossos planos, as favas com nosso apego ao que nos foi ensinado, as favas com a tentativa de repetição de um relacionamento como o de nossos pais. E que venha um amor que nos faça suspirar ao invés de trancar a respiração. E que venha o amor como uma força da natureza que me apague as idealizações e me acorde para o movimento de pulsação e mutação de
tudo que é vivo.
Que tenhamos Amores vivos!
“As pessoas só têm charme em sua loucura, eis o que é difícil de ser entendido. O verdadeiro charme das pessoas é aquele em que elas perdem as estribeiras, é quando elas não sabem muito bem em que ponto estão. Não que elas desmoronem, pois são pessoas que não desmoronam. Mas, se não captar aquela pequena raiz, o pequeno grão de loucura da pessoa, não se pode amá-la. Não pode amá-la. É aquele lado em que a pessoa está completamente... Aliás, todos nós somos um pouco dementes. Se não se captar o ponto de demência de alguém... Ele pode assustar, mas, quanto a mim, fico feliz de constatar que o ponto de demência de alguém é a fonte de seu charme.” – Gilles Deleuze
Caio Paes de Freitas | Esquizoanalista
Comments